Poucos amigos


                                                                                             JR Guzzo                                                        
       

       Numa dessas anotações que certamente contribuíram para lhe dar a reputação de grande fotógrafo da existência humana em sua época, Stendhal observou que a Igreja Católica aprendeu bem depressa que o seu pior inimigo eram os livros. Não os reis, as guerras religiosas ou a competição com outras religiões; isso tudo podia atrapalhar, claro, mas o que realmente criava problemas sérios eram os livros. Neles as pessoas ficavam sabendo de coisas que não sabiam, porque os padres não lhes contavam, e descobriam que podiam pensar por conta própria, em vez de aceitar que os padres pensassem por elas. Abria-se para os indivíduos, nesse mesmo movimento, a possibilidade de discordar. Para quem manda, não pode haver coisa pior – como ficou comprovado no caso da Igreja, que foi perdendo sua força material sobre países e povos, e no caso de rodas as ditaduras, de ontem, de hoje e de amanhã. Stendhal estava falando, na sua França de 200 anos atrás, de algo que viria a evoluir, crescer e acabar recebendo o nome de “opinião pública”. Os livros, ou, mais exatamente, a possibilidade de reproduzir de forma ilimitada palavras e ideias foram a sua pedra fundamental.

                      A leitura de livros, ou de qualquer coisa escrita, não parece estar num bom momento no Brasil de hoje; a opinião pública também não. Vive-se uma época em que a cada três meses é anunciada alguma “revolução” nisso ou naquilo, depois da qual o mundo nunca mais “será o mesmo” de antes. Quando tais  portentos envolvem áreas ligadas à comunicação, sempre se insiste, de um jeito ou de outro, em prever que a leitura está a caminho de se transformar num hábito do passado. Cada vez mais, no dia a dia, sua valorização posta de lado – ou “relativizada”, como se diz. É comum, por exemplo, ouvir declarações lamentando que árvores sejam cortadas para produzir papel destinado à impressão; a única forma aceitável de leitura, para muita gente boa, deveria ser a tela de algum artefato digital. Empresas de grande renome não consideram uma virtude, no julgamento de seus executivos, o gosto pela leitura, a não ser que se trate de publicações profissionais. Não passa pela cabeça de nenhum recrutador perguntar a um candidato a emprego o que ele está lendo, por mais alto e bem pago que seja o posto a ser preenchido. É claramente desaconselhável ao funcionário, no ambiente de trabalho, deixar sobre a mesa qualquer livro que não seja diretamente ligado à sua atividade. Arrisca-se, caso contrário, a ser interrogado pelo chefe: “Por que você está lendo isso?”.   


          Nas novelas de televisão, que continuam sendo o principal entretenimento para milhões de brasileiros, jamais se vê um personagem lendo um livro. Discute-se com muito calor, no momento, quantos beijos entre pessoas do mesmo sexo podem ser dados num capítulo, ou se um casal gay pode aparecer tomando o café da manhã na cama; prega-se, ao longo da trama, todo tipo de causa, da defesa das geleiras à política de cotas raciais, da preservação dos mangues à condenação da gordura trans. O que não aparece, de jeito nenhum, é alguém lendo alguma coisa. O ato de ler também está banido da publicidade de consumo; há uma clara preferência, aí, por algo que se parece muito com um culto intensivo à boçalidade. Da atitude geral do governo diante da leitura, então, é melhor nem falar; registre-se, em todo caso, sua profunda satisfação em anunciar, sempre que é incomodado pelo noticiário de escândalos publicado na imprensa, que “o brasileiro não lê nada”.


         Naturalmente, ninguém se coloca hoje como inimigo dos livros; mas é certo que muitos se beneficiam com o fato de que a leitura, nestes dias, tem poucos amigos na praça. Quanto menos se lê, menos ideias são mantidas em circulação. Quanto menos ideias, menos espaço sobra para a discordância, a procura de alternativas e a fiscalização dos atos do governo. O resultado, na prática, é uma indiferença generalizada em relação ao comportamento de quem governa. Não há muito a fazer quanto a isso. A opinião pública não tem nenhuma obrigação de pensar assim ou assado, muito menos de estar “certa” – ela é o que é, e parece perfeitamente inútil esperar que sinta o que não sente, ou que queira o que não quer. Essas realidades, entretanto, têm o seu preço. No caso do Brasil atual, o desinteresse pelo que acontece na vida pública é pago com a multiplicação, em ritmo cada vez mais rápido, de todo tipo de parasitas dedicados a prosperar com o dinheiro do Erário. É certo que eles não irão embora por sua livre e espontânea vontade.



Publicado na Revista VEJA em 3/8/11 



Passaram-se cinco anos e o texto continua atual...
Vamos fazer nossa parte para mudar isso! Vamos ler mais e sempre que possível vamos divulgar e incentivar a leitura!
Vivian


* Stendhal Marie Henri Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 – Paris, 23 de março de 1842) notabilizou-se como romancista e crítico. Seu estilo, ao contrário do excesso de ornamentos, valorizava o perfil psicológico dos personagens, a interpretação de seus atos, sentimentos e paixões. Seus romances mais conhecidos são: Do amor (1822), O vermelho e o negro (1831) e A cartuxa de Parma (1839), obras de notável análise psicológica, escritas todas elas com uma precisão e uma nudez simultaneamente naturais e intencionais. 


*José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro.